RESOLUÇÃO N. 487, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2023 CNJ

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RESOLUÇÃO N. 487, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2023, CNJ

Institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei n. 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança.

A PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas atribuições legais e regimentais,

CONSIDERANDO os princípios da República Federativa do Brasil, fundada na dignidade da pessoa humana e, especialmente, os direitos fundamentais à saúde, ao devido processo legal e à individualização da pena (CF, arts. 1º, III; 5º, XLVI, LIV e 6º, caput);

CONSIDERANDO a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2006), pela qual o Estado brasileiro comprometeu-se a promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação;

CONSIDERANDO a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e seu Protocolo Facultativo (2002) e a necessidade de combater a sua prática nas instituições de tratamento da saúde mental, públicas ou privadas, bem como a Resolução CNJ n. 414/2021, que estabelece diretrizes e quesitos periciais para a realização dos exames de corpo de delito nos casos em que haja indícios de prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, conforme os parâmetros do Protocolo de Istambul;

CONSIDERANDO o Ponto Resolutivo 8 da sentença da Corte Interamericana de Direito Humanos proferida no Caso Ximenes Lopes vs. Brasil, que determinou ao Estado brasileiro continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria;

CONSIDERANDO que a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (UMF Corte IDH/CNJ), instituída no âmbito do Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução CNJ n. 364/2021, acompanha o cumprimento das determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação ao Estado brasileiro;

CONSIDERANDO a Lei n. 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental;

CONSIDERANDO a Lei n. 13.146/2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que assegura e promove, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania;

CONSIDERANDO a Resolução n. 32/18, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em julho de 2016, que reafirma as obrigações dos Estados Membros em promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais e garantir que políticas e serviços relacionados à saúde mental cumpram as normas internacionais de direitos humanos;

CONSIDERANDO o Relatório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas, apresentado na 34ª Sessão da Assembleia Geral da ONU em janeiro de 2017, que expõe um conjunto de recomendações voltadas à qualificação dos serviços de saúde mental, a acabar com a prática do tratamento involuntário e da institucionalização e para criação de um ambiente político e legal que assegure a garantia dos direitos humanos das pessoas com deficiências psicossociais;

CONSIDERANDO a Resolução n. 8/2019 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), destinada à orientação das políticas de saúde mental e uso problemático de álcool e outras drogas em todo o território nacional, e as Resoluções n. 04/2010 e 05/2004 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), para a aplicação da Lei n. 10.216/2001 à execução das medidas de segurança;

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 113/2010 e a Recomendação CNJ n. 35/2011, publicadas com o objetivo de adequar a atuação da justiça penal aos dispositivos da Lei n. 10.216/2001, privilegiando-se a manutenção da pessoa em sofrimento mental em meio aberto e o diálogo permanente com a rede de atenção psicossocial;

CONSIDERANDO o art. 9º, § 3º, da Resolução CNJ n. 213/2015, que dispõe sobre a realização de audiência de custódia, disciplinando sobre a garantia de acesso aos serviços médico e psicossocial, resguardada sua natureza voluntária, para pessoas que apresentem quadro de transtorno mental ou dependência química;

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 288/2019, que define a política institucional do Poder Judiciário para a promoção da aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade, bem como a Resolução n. 2002/2012 do Conselho Econômico e Social da ONU, destinada à orientação dos princípios básicos para a utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal, além da Resolução CNJ n. 225/2016, que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário;

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 425/2021, que institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades;

CONSIDERANDO a atenção às minorias com vulnerabilidades acrescidas e suas interseccionalidades, bem como os atos normativos do CNJ sobre a temática em relação à privação de liberdade, como a Resolução CNJ n. 287/2019 (indígenas); Resolução CNJ n. 348/2020 (LGBTI); Resolução CNJ n. 405/021 (migrantes); Resolução CNJ n. 369/2021 (gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência);

CONSIDERANDO a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), instituída por meio da Portaria Interministerial n. 1/2014, dos Ministérios da Saúde e da Justiça, bem como a Portaria n. 94/2014, do Ministério da Saúde, que institui o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS);

CONSIDERANDO as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Pequim);

CONSIDERANDO o art. 112, § 3° do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), instituído pela Lei n. 8.069/1990, que dispõe que adolescente com sofrimento mental ou transtorno psíquico deverão receber tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições;

CONSIDERANDO o art. 64, em especial, § 7° da Lei n. 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que dispõe que o tratamento a que se submeterá o adolescente com sofrimento mental ou transtorno psíquico deverá observar o previsto na Lei n. 10.216/2001;

CONSIDERANDO, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentada pelas Portarias Consolidadas/MS n. 2/2017 (Anexo XVII) e n. 6/2017 (Seção V, Capítulo II);

CONSIDERANDO a deliberação do Plenário do CNJ, no Procedimento de Ato Normativo n. 0007026-10.2022.2.00.0000, 1ª Sessão Virtual, realizada em 10 de fevereiro de 2023;

RESOLVE:

CAPÍTULO I

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º Instituir a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, por meio de procedimentos para o tratamento das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial que estejam custodiadas, sejam investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade, em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto, e conferir diretrizes para assegurar os direitos dessa população.

Art. 2º Para fins desta Resolução, considera-se:

I – pessoa com transtorno mental ou com qualquer forma de deficiência psicossocial: aquela com algum comprometimento, impedimento ou dificuldade psíquica, intelectual ou mental que, confrontada por barreiras atitudinais ou institucionais, tenha inviabilizada a plena manutenção da organização da vida ou lhe cause sofrimento psíquico e que apresente necessidade de cuidado em saúde mental em qualquer fase do ciclo penal, independentemente de exame médico-legal ou medida de segurança em curso;

II – Rede de Atenção Psicossocial (Raps): rede composta por serviços e equipamentos variados de atenção à saúde mental, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento (UAs) e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos Caps III), presentes na Atenção Básica de Saúde, na Atenção Psicossocial Estratégica, nas urgências, na Atenção Hospitalar Geral, na estratégia de desinstitucionalização, como as Residências Terapêuticas, o Programa de Volta para Casa (PVC) e estratégias de reabilitação psicossocial;

III – Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP): equipe multidisciplinar que acompanha o tratamento durante todas as fases do procedimento criminal com o objetivo de apoiar ações e serviços para atenção à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei na Rede de Atenção à Saúde (RAS) e para viabilizar o acesso à Rede de Atenção Psicossocial (Raps);

IV – equipe conectora: equipe vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS) que exerça função análoga à da EAP;

V – equipe multidisciplinar qualificada: equipe técnica multidisciplinar que tenha experiência e incursão nos serviços com interface entre o Poder Judiciário, a saúde e a proteção social; do Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (Apec); do Serviço de Acompanhamento de Alternativas Penais; da EAP ou outra equipe conectora;

VI – Projetos Terapêuticos Singulares (PTS): conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas para um indivíduo, uma família ou comunidade, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar e centrado na singularidade da pessoa em tratamento, de modo a contribuir para a estratégia compartilhada de gestão e de cuidado, possibilitando a definição de objetivos comuns entre equipe e sujeito em acompanhamento em saúde; e

VII – Modelo Orientador: modelo elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça com o objetivo de instruir o Poder Judiciário acerca dos fluxos a serem adotados para o cuidado da pessoa com transtorno mental submetida a procedimento criminal, em local adequado à atenção em saúde a fim de adotar os parâmetros dispostos na presente Resolução.

Parágrafo único. Estão abrangidas por esta Resolução, nos termos do caput deste artigo, as pessoas em sofrimento ou com transtorno mental relacionado ao uso abusivo de álcool e outras drogas, que serão encaminhadas para a rede de saúde, nos termos do art. 23- A da Lei n. 11.343/2006, garantidos os direitos previstos na Lei n. 10.216/2001.

Art. 3º São princípios e diretrizes que regem o tratamento das pessoas com transtorno mental no âmbito da jurisdição penal:

I – o respeito pela dignidade humana, singularidade e autonomia de cada pessoa;

II – o respeito pela diversidade e a vedação a todas as formas de discriminação e estigmatização, com especial atenção aos aspectos interseccionais de agravamento e seus impactos na população negra, LGBTQIA+, mulheres, mães, pais ou cuidadores de crianças e adolescentes, pessoas idosas, convalescentes, migrantes, população em situação de rua, povos indígenas e outras populações tradicionais, além das pessoas com deficiência;

III – o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e o acesso à justiça em igualdade de condições;

IV – a proscrição à prática de tortura, maus tratos, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes;

V – a adoção de política antimanicomial na execução de medida de segurança;

VI – o interesse exclusivo do tratamento em benefício à saúde, com vistas ao suporte e reabilitação psicossocial por meio da inclusão social, a partir da reconstrução de laços e de referências familiares e comunitárias, da valorização e do fortalecimento das habilidades da pessoa e do acesso à proteção social, à renda, ao trabalho e ao tratamento de saúde;

VII – o direito à saúde integral, privilegiando-se o cuidado em ambiente terapêutico em estabelecimentos de saúde de caráter não asilar, pelos meios menos invasivos possíveis, com vedação de métodos de contenção física, mecânica ou farmacológica desproporcional ou prolongada, excessiva medicalização, impedimento de acesso a tratamento ou medicação, isolamento compulsório, alojamento em ambiente impróprio e eletroconvulsoterapia em desacordo com os protocolos médicos e as normativas de direitos humanos;

VIII – a indicação da internação fundada exclusivamente em razões clínicas de saúde, privilegiando-se a avaliação multiprofissional de cada caso, pelo período estritamente necessário à estabilização do quadro de saúde e apenas quando os recursos extrahospitalares se mostrarem insuficientes, vedada a internação em instituição de caráter asilar, como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) e estabelecimentos congêneres, como hospitais psiquiátricos;

IX – a articulação interinstitucional permanente do Poder Judiciário com as redes de atenção à saúde e socioassistenciais, em todas as fases do procedimento penal, mediante elaboração de PTS nos casos abrangidos por esta Resolução;

X – arestauratividade como meio para a promoção da harmonia social, mediante a garantia do acesso aos direitos fundamentais e a reversão das vulnerabilidades sociais;

XI – atenção à laicidade do Estado e à liberdade religiosa integradas ao direito à saúde, que resultam na impossibilidade de encaminhamento compulsório a estabelecimentos que não componham a Raps ou que condicionem ou vinculem o tratamento à conversão religiosa ou ao exercício de atividades de cunho religioso; e

XII – respeito à territorialidade dos serviços e ao tratamento no meio social em que vive a pessoa, visando sempre a manutenção dos laços familiares e comunitários.

CAPÍTULO II

DAS DIRETRIZES DA POLÍTICA ANTIMANICOMIAL

Seção I

Das audiências de custódia

Art. 4º Quando apresentada em audiência de custódiapessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial identificados por equipe multidisciplinar qualificada, ouvidos o Ministério Público e a defesa, caberá à autoridade judicial o encaminhamento para atendimento voluntário na Raps voltado à proteção social em políticas e programas adequados, a partir de fluxos préestabelecidos com a rede, nos termos da Resolução CNJ n. 213/2015 e do Modelo Orientador CNJ.

Parágrafo único. Será assegurada à pessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial a oportunidade de manifestar a vontade de ter em sua companhia pessoa por ela indicada, integrante de seu círculo pessoal ou das redes de serviços públicos com as quais tenha vínculo, ou seja, referenciada, para o fim de assisti-la durante o ato judicial.

Art. 5º Nos casos em que a autoridade judicial, com apoio da equipe multidisciplinar e após ouvidos o Ministério Público e a defesa, entender que a pessoa apresentada à audiência de custódia está em situação de crise em saúde mental e sem condições de participar do ato, solicitará tentativas de manejo de crise pela equipe qualificada.

§1º Para efeitos deste artigo, entende-se por manejo da crise o imediato acionamento de equipe de saúde da Raps para a tomada de medidas emergenciais e referenciamento do paciente ao serviço de saúde, além da realização de ações de escuta, compreensão da condição pessoal, produção imediata de consensos possíveis, mediação entre a pessoa e as demais presentes no ambiente e a restauração do diálogo, bem como, o quanto antes, a identificação dos fatores que possivelmente desencadearam a crise.

§2º Caso exauridas sem sucesso as tentativas de manejo de crise, a autoridade judicial realizará o encaminhamento da pessoa para atendimento em saúde por meio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou outros serviços da Raps, e providenciará o registro da não realização da audiência de custódia, por meio de termo no qual constará:

I – a determinação para elaboração de relatório médico acompanhado, se for o caso, de informes dos demais profissionais de saúde do estabelecimento ao qual a pessoa presa em flagrante for encaminhada, a fim de documentar eventuais indícios de tortura ou maus tratos, a ser remetido ao juízo em 24 (vinte e quatro) horas;

II – a requisição imediata de informações às secretarias municipal ou estadual de saúde sobre a atual condição da pessoa e indicação de acompanhamento em saúde mais adequado, que poderá compor o PTS, com descrição de eventual tratamento que esteja em curso, a serem prestadas em 48 (quarenta e oito) horas, com a finalidade de subsidiar a tomada de decisão judicial.

§3º Caso a pessoa não receba alta médica para ser apresentada em juízo no prazo legal, a autoridade judicial poderá realizar o ato no local em que a pessoa se encontrar e, nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá providenciar a condução para a realização da audiência de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação.

Art. 6º A autoridade judicial, quando da análise da legalidade da prisão em flagrante, avaliará se o uso de algemas ou instrumentos de contenção física atendeu aos princípios da proporcionalidade e não discriminação, considerada a condição de saúde mental da pessoa, ou se ocorreu de maneira a causar deliberadamente dores ou lesões desnecessárias, o que poderia configurar hipótese de tortura ou maus tratos, conforme os parâmetros elencados pelo CNJ no Manual de Algemas e Outros Instrumentos de Contenção em Audiências Judiciais.

Art. 7º Nos casos dos art. 4º ou 5º, não sendo hipótese de relaxamento da prisão, a autoridade judicial avaliará a necessidade e adequação de eventual medida cautelar, consideradas as condições de saúde da pessoa apresentada e evitando a imposição de:

I – medida que dificulte o acesso ou a continuidade do melhor tratamento disponível, ou que apresente exigências incompatíveis ou de difícil cumprimento diante do quadro de saúde apresentado; e

II – medidas concomitantes que se revelem incompatíveis com a rotina de acompanhamento na rede de saúde.

§1º Será priorizada a adoção de medidas distintas do monitoramento eletrônico para pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial, sem que isso enseje a aplicação de medidas que obstem o tratamento em liberdade.

§2º A autoridade judicial levará em consideração as condições que ampliem a vulnerabilidade social, bem como os aspectos interseccionais, no caso de pessoas em situação de rua, população negra, mulheres, população LGBTQIA+, mães, pais ou cuidadores de crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas convalescentes, migrantes, povos indígenas e outras populações tradicionais, para que a aplicação de eventual medida seja condizente com a realidade social e o referenciamento aos serviços especializados da rede de proteção social.

Art. 8º Nos casos em que a autoridade judicial substituir a prisão preventiva pela domiciliar, nos termos do art. 318 do Código de Processo Penal, serão garantidos a possibilidade de tratamento adequado na Raps e o exercício de outras atividades que reforcem a autonomia da pessoa, como trabalho e educação.

Seção II

Da necessidade de tratamento em saúde mental no curso de prisão preventiva ou outra medida cautelar

Art. 9º No caso de a pessoa necessitar de tratamento em saúde mental no curso de prisão processual ou outra medida cautelar, a autoridade judicial:

I – no caso de pessoa presa, reavaliará a necessidade e adequação da prisão processual em vigor ante a necessidade de atenção à saúde, para início ou continuidade de tratamento em serviços da Raps, ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério Público e a defesa;

II – no caso de pessoa solta, reavaliará a necessidade e adequação da medida cautelar em vigor, observando-se as disposições do artigo anterior.

Parágrafo único. O encaminhamento para os serviços da Raps ou rede de proteção social será apoiado pelas equipes mencionadas no art. 2º, III, IV e V, considerando a interlocução entre esses serviços e os equipamentos responsáveis pelo tratamento em saúde, de modo que eventuais subsídios sobre a singularidade do acompanhamento da pessoa sejam aportados ao processo visando a priorização da saúde.

Art. 10. A análise sobre a imputabilidade da pessoa, quando necessária, poderá ser qualificada com requisição de informações sobre o atendimento e o tratamento dispensado nos serviços aos quais a pessoa esteja vinculada, respeitado o sigilo de informações pessoais e médicas.

Parágrafo único. Considerando que o incidente de insanidade mental que subsidiará a autoridade judicial na decisão sobre a culpabilidade ou não do réu é prova pericial constituída em favor da defesa, não é possível determiná-la compulsoriamente em caso de oposição desta.

Seção III

Da medida de segurança

Art. 11. Na sentença criminal que imponha medida de segurança, a autoridade judicial determinará a modalidade mais indicada ao tratamento de saúde da pessoa acusada, considerados a avaliação biopsicossocial, outros exames eventualmente realizados na fase instrutória e os cuidados a serem prestados em meio aberto.

Parágrafo único. A autoridade judicial levará em conta, nas decisões que envolvam imposição ou alteração do cumprimento de medida de segurança, os pareceres das equipes multiprofissionais que atendem o paciente na Raps, da EAP ou outra equipe conectora.

Subseção I

Do tratamento ambulatorial

Art. 12. A medida de tratamento ambulatorial será priorizada em detrimento da medida de internação e será acompanhada pela autoridade judicial a partir de fluxos estabelecidos entre o Poder Judiciário e a Raps, com o auxílio da equipe multidisciplinar do juízo, evitando-se a imposição do ônus de comprovação do tratamento à pessoa com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial.

§1º O acompanhamento da medida levará em conta o desenvolvimento do PTS e demais elementos trazidos aos autos pela equipe de atenção psicossocial, a existência e as condições de acessibilidade ao serviço, a atuação das equipes de saúde, a vinculação e adesão da pessoa ao tratamento.

§2º Eventuais interrupções no curso do tratamento devem ser compreendidas como parte do quadro de saúde mental, considerada a dinâmica do acompanhamento em saúde e a realidade do território no qual a pessoa e o serviço estão inseridos.

§3º A ausência de suporte familiar não deve ser entendida como condição para a imposição, manutenção ou cessação do tratamento ambulatorial ou, ainda, para a desinternação condicional.

§4º Eventual prescrição de outros recursos terapêuticos a serem adotados por equipe de saúde por necessidade da pessoa e enquanto parte de seu PTS, incluindo a internação, não deve ter caráter punitivo, tampouco deve ensejar a conversão da medida de tratamento ambulatorial em medida de internação.

§5º A autoridade judicial avaliará a possibilidade de extinção da medida de segurança, no mínimo, anualmente, ou a qualquer tempo, quando requerido pela defesa ou indicada pela equipe de saúde que acompanha o paciente, não estando condicionada ao término do tratamento em saúde mental.

Subseção II

Da medida de internação

Art. 13. A imposição de medida de segurança de internação ou de internação provisória ocorrerá em hipóteses absolutamente excepcionais, quando não cabíveis ou suficientes outras medidas cautelares diversas da prisão e quando compreendidas como recurso terapêutico momentaneamente adequado no âmbito do PTS, enquanto necessárias ao restabelecimento da saúde da pessoa, desde que prescritas por equipe de saúde da Raps.

§1º A internação, nas hipóteses referidas no caput, será cumprida em leito de saúde mental em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelo Caps da Raps, cabendo ao Poder Judiciário atuar para que nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares, como os HCTPs ou equipamentos congêneres, assim entendidas aquelas sem condições de proporcionar assistência integral à saúde da pessoa ou de possibilitar o exercício dos direitos previstos no art. 2º da Lei n. 10.216/2001.

§2º A internação cessará quando, a critério da equipe de saúde multidisciplinar, restar demonstrada a sua desnecessidade enquanto recurso terapêutico, caso em que, comunicada a alta hospitalar à autoridade judicial, o acompanhamento psicossocial poderá continuar nos demais dispositivos da Raps, em meio aberto.

§3º Recomenda-se à autoridade judicial a interlocução constante com a equipe do estabelecimento de saúde que acompanha a pessoa, a EAP ou outra equipe conectora, para que sejam realizadas avaliações biopsicossociais a cada 30 (trinta) dias, a fim de se verificar as possibilidades de reversão do tratamento para modalidades em liberdade ou mesmo para sua extinção.

Art. 14. Serão proporcionadas ao paciente em internação, sem obstrução administrativa, oportunidades de reencontro com sua comunidade, sua família e seu círculo social, com atividades em meio aberto, sempre que possível, evitando-se ainda sua exclusão do mundo do trabalho, nos termos do PTS.

Seção IV

Da necessidade de tratamento em saúde mental no curso da execução da pena

Art. 15. Nos casos em que a pessoa submetida ao cumprimento de pena necessitar de tratamento em saúde mental, a autoridade judicial avaliará a necessidade e adequação da prisão em vigor ante a demanda de atenção à saúde, para início ou continuidade de tratamento em serviços da Raps, ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério Público e a defesa.

Parágrafo único. O encaminhamento para os serviços da Raps e à rede de proteção social será apoiado pelas equipes de saúde das unidades prisionais, pela EAP e demais equipes conectoras, a partir de constante interlocução com os equipamentos da Raps responsáveis pelo tratamento, de modo que subsídios sobre a singularidade do acompanhamento da pessoa sejam aportados ao processo com a finalidade de priorização da saúde.

Seção V

Da desinstitucionalização

Art. 16. No prazo de até 6 (seis) meses, contados a partir da entrada em vigor desta Resolução, a autoridade judicial competente revisará os processos a fim de avaliar a possibilidade de extinção da medida em curso, progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado, nos casos relativos:

I – à execução de medida de segurança que estejam sendo cumpridas em HCTPs, em instituições congêneres ou unidades prisionais;

II – a pessoas que permaneçam nesses estabelecimentos, apesar da extinção da medida ou da existência de ordem de desinternação condicional; e

III – a pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial que estejam em prisão processual ou cumprimento de pena em unidades prisionais, delegacias de polícia ou estabelecimentos congêneres.

Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, o Comitê Estadual Interinstitucional de Monitoramento da Política Antimanicomial previsto no art. 20, VI, e as equipes conectoras ou multidisciplinares qualificadas apoiarão as ações permanentes de desinstitucionalização.

Art. 17. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a autoridade judicial competente para a execução penal determinará a elaboração, no prazo de 12 (doze) meses contados da entrada em vigor desta Resolução, de PTS para todos os pacientes em medida de segurança que ainda estiverem internados em HCTP, em instituições congêneres ou unidades prisionais, com vistas à alta planejada e à reabilitação psicossocial assistida em meio aberto, a serem apresentadas no processo ou em audiência judicial que conte com a participação de representantes das entidades envolvidas nos PTSs.

Art. 18. No prazo de 6 (seis) meses contados da publicação desta Resolução, a autoridade judicial competente determinará a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, com proibição de novas internações em suas dependências e, em até 12 (doze) meses a partir da entrada em vigor desta Resolução, a interdição total e o fechamento dessas instituições.

CAPÍTULO III

DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 19. Recomenda-se, sempre que possível, em qualquer fase processual, a derivação de processos criminais que envolvem pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial para programas comunitários ou judiciários de justiça restaurativa, a partir da utilização de vias consensuais alternativas, visando à desinstitucionalização, em consonância com os princípios norteadores da justiça restaurativa presentes na Resolução CNJ n. 225/2016.

Art. 20. Os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMFs) dos tribunais poderão:

I – realizar inspeções judiciais, de modo conjunto com as autoridades judiciais da execução penal, nos estabelecimentos em que estejam internadas pessoas em cumprimento de medida de segurança, bem como aquelas internadas provisoriamente, podendo, para tanto, articular-se com as secretarias de saúde, conselhos profissionais com atuação na área da saúde, como os Conselhos Regional ou Federal de Serviço Social e de Psicologia, e instâncias paritárias e organizações da sociedade civil, para verificar as condições dos referidos espaços à luz da Lei n. 10.216/2001;

II – mobilizar a Raps, juntamente com a EAP, visando a integração entre as práticas inerentes à justiça criminal e à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) e o direcionamento de formas de atenção segundo as premissas consignadas nesta norma e nos moldes previstos no art. 4º, § 4º da Portaria n. 94/GM/MS, de 14 de janeiro de 2014;

III – fomentar a atuação do Poder Judiciário de modo articulado com a EAP e demais equipes conectoras para a identificação de pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial em unidades de custódia potencialmente destinatários de medidas terapêuticas;

IV – fomentar a instituição e o fortalecimento da PNAISP e da EAP junto às Secretarias Estadual e Municipais de Saúde;

V – fomentar e colaborar com a construção de fluxos de atenção à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, envolvendo os órgãos e instâncias responsáveis pelas políticas de administração penitenciária, saúde e assistência social, com base no paradigma antimanicomial e no Modelo Orientador CNJ; e

VI – instituir ou participar de Comitê Estadual Interinstitucional de Monitoramento da Política Antimanicomial no âmbito do Poder Judiciário, o qual contará com representantes do GMF, da Vara de Execução Penal, da Saúde Mental-Raps, da Assistência Social, do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, onde houver, dos Conselhos Regionais de Serviço Social, Psicologia e Medicina, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Conselho da Comunidade, onde houver, da Equipe de Saúde da Secretaria responsável pela gestão prisional, podendo contar ainda com outros Conselhos de Direitos, Organizações da Sociedade Civil afetas ao tema, usuários da Política de Saúde Mental, entre outros.

Art. 21. Para o cumprimento do disposto nesta Resolução, os tribunais poderão promover, em colaboração com as Escolas de Magistratura, cursos destinados à permanente qualificação e atualização funcional de magistrados e servidores no tema da saúde mental em consonância com os parâmetros nacionais e internacionais dos Direitos Humanos.

Art. 22. Esta Resolução também será aplicada aos adolescentes com transtorno ou sofrimento mental apreendidos, processados por cometimento de ato infracional ou em cumprimento de medida socioeducativa, no que couber, enquanto não for elaborado ato normativo próprio, considerando-se a condição de pessoa em desenvolvimento, o princípio da prioridade absoluta e as devidas adaptações, conforme previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Art. 23. O Conselho Nacional de Justiça, por meio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), dará suporte permanente às ações dos tribunais e de magistrados e magistradas no cumprimento desta Resolução.

Parágrafo único. O DMF elaborará, no prazo de até 180 (cento e oitenta) dias, Manual com Modelo Orientador CNJ voltado à orientação dos tribunais e magistrados quanto à implementação do disposto nesta Resolução.

Art. 24. Esta Resolução entra em vigor em 90 (noventa) dias após sua publicação.

Ministra ROSA WEBER

Fonte: Conselho Nacional de Justiça: RESOLUÇÃO N. 487

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